Artigo do presidente da OAB/RS, Ricardo Breier, publicado no Estadão: Vacina privada: exclusão?


10.02.21 | Diversos

Diante de uma avalanche de desafios e projeções de soluções para superarmos a pandemia do novo Coronavírus, há um novo debate em evidência na sociedade brasileira e internacional. Mais uma vez, a moral e a ética são protagonistas de um impasse. O dilema está posto: Empresas e entidades privadas devem concorrer com os governos dos países e fazer valer um poder de oferta vantajoso para adquirir vacinas para seus colaboradores? Sendo ainda mais objetivo: quem tem mais condição econômica e influência deve ir às compras nos laboratórios para ser vacinado primeiro?

Num primeiro momento, surge como argumento um dos princípios basilares de uma economia globalizada: o da livre concorrência. Se as regras permitem, basta pedir um orçamento para um laboratório, fazer um depósito online do valor a ser pago e esperar a chegada das vacinas. É uma relação comercial. Ponto.

Ponto, não. Vírgula. O regramento acima se enquadra perfeitamente em tempos normais. Estamos longe disso. O cenário é de absoluta excepcionalidade. Vivemos uma guerra contra um inimigo invisível. As vítimas estão aí para nos lembrar diariamente o que representa essa pandemia.

Um dos grandes impactos que essa pandemia está causando é o de acordar parte da humanidade. É lembrar que vivemos num mesmo planeta. É compreender que estamos num ambiente coletivo. É mostrar que a irresponsabilidade de alguns pode afetar milhões – ou bilhões. E, neste momento, o conceito de solidariedade precisa prevalecer.

Ser solidário, neste momento, é compreender que o dinheiro não pode comprar tudo, e que existem posturas éticas a serem adotadas. Há escassez de insumos para as vacinas. Há dificuldades de logística. Está em curso uma mobilização global para proteger, prioritariamente, os mais vulneráveis e aqueles que estão mais expostos – profissionais da saúde. Há a necessidade de se adotar estratégias macro – e não micro, isoladas – para que o retorno à normalidade ocorra de forma segura, harmonizada e previsível. Há a necessidade de se evitar um histórico perverso de privilégios em um momento que todos precisam de todos.

Com esse quadro, é aceitável que os países, com seus sistemas e estratégias públicas, para atender a milhões, tenham que concorrer e disputar vacinas com a iniciativa privada e suas tentadoras ofertas em dólares junto aos laboratórios? Essa é a lição que deve ser passada para a sociedade num período tão dramático e sofrido?

É hora de estimular a solidariedade. Abrir espaço para um mercado paralelo de venda de vacinas ou gerar inflação a partir da pressão nos laboratórios segue exatamente na contramão dessa postura solidária. O SUS é prioridade, ele possui condição de atender a população através da sua imensa capilaridade de rede de agentes de saúde existente nos Estados e municípios, enfim a todos nós!

No dia 29 de janeiro deste ano, o Comitê de Bioética do Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo, divulgou um parecer sobre "a ética da compra privada de vacinas contra a COVID19 durante a situação de pandemia”. Em seis laudas, é feita uma análise da situação pela qual estamos passando, e são apresentados argumentos sobre o tema em questão.

Compartilho, aqui, um trecho final da manifestação do comitê: “Entendemos que, durante uma situação de escassez mundial absoluta de insumos para continuar a vacinação, concomitantemente, há uma situação de necessidade generalizada e urgente da vacina decorrente de uma pandemia. A compra e distribuição de doses de vacina pela iniciativa privada, gerando a vacinação de indivíduos fora dos grupos prioritários que mais se beneficiam, fere os princípios fundamentais da equidade, da integralidade, da universalidade e da justiça distributiva. E isso acaba ferindo, não só os próprios fundamentos do SUS, mas também a própria lógica que gera o benefício de uma campanha de vacinação.”

É necessário tirar lições para que possamos aperfeiçoar nossa convivência. Tudo tem um limite – ético e moral. Que venham as vacinas, e que as estratégias coletivas de natureza pública sejam respeitadas em detrimento do lucro ambicioso.

Fonte: OAB/RS